Ela viveu dias de sentimentos misturados, que iam de alegria, euforia, dor, incerteza, e a busca pelo desvendar o desconhecido. Mas, estava em sua alma: mãe é isso, não é? Mistura de sentimentos e realizações. Uma defensora, amiga, amor em forma de ser humano. Enfermeira, Ariela Muller Dutra, foi mãe aos 38 anos, e conta que Cecília é resposta das suas orações: “veio para me mostrar que a felicidade está nos detalhes do dia a dia”, conta.
Cecília nasceu com um cromossomo a mais: o que chamamos de síndrome de Down, e colocou Ariela na lista das milhares de mães atípicas existentes no mundo. De acordo com dados disponíveis até 2023, estima-se que aproximadamente 1 em cada 700 a 1 em cada 1.000 nascimentos no Brasil seja de crianças com síndrome de Down. Isso corresponde a cerca de 0,1% a 0,14% dos nascimentos. Portanto, o percentual de mães com filhos com síndrome de Down no Brasil é aproximadamente entre 0,1% e 0,14%.
“Minha história com a maternidade começou muito antes de eu estar grávida, pelo desejo muito forte de ser mãe. Eu era oficial do Exército Brasileiro, e fui fazer uma missão na Venezuela. Como enfermeira eu fui direcionada para ser chefe de um posto de enfermagem em um hospital de campanha. E os maiores atendimentos que realizávamos eram de crianças – debilitadas, desnutridas, doentes, com calendário vacinal ruim, e muito necessitadas. Isso despertou-me para a Pediatria, uma área que gosto muito”, revela Adriela.
Foi quando retornou da missão que ela decidiu conversar com o marido sobre o desejo de ter um filho. “Era 2020, ano de pandemia, a gente resolveu não arriscar. Mas no ano seguinte, 2021, eu lembro que era Natal e fui na árvore de natal e pedi para Deus que eu queria ser mãe”, destacou. Ao longo dos anos o desejo de ser mãe aumentava.
Logo depois de uma das dezenas de viagens, o desejo foi realizado: ela estava grávida. “A gestação iniciou muito bem, e fiquei feliz. Já tínhamos decidido até mesmo o nome da Cecília. Até que eu fui fazer um exame morfológico, em fevereiro de 2022, quando descobrimos que ela tinha algumas alterações nos marcadores genéticos. “Podia ser alguma síndrome ou cardiopatia. Então o médico me recomendou fazer um exame genético”, lembra. “Eu sempre pedi a Deus que me mandasse o filho que fosse, que eu iria aceitar o filho que Ele escolhesse para mim. E Ele me mandou a mais perfeita de todas”, destacou.
A GESTAÇÃO, A DESCOBERTA E O ABANDONO
Foi no dia do aniversário de Ariela, dia 22 de fevereiro, que ela descobriu que estava gestando uma criança com síndrome de Down. “Foram dez dias muito difíceis”, lembra. “Em primeiro momento eu senti que a sociedade é muito cruel. A própria médica me aconselhou a abortar”, diz. “Eu pensei em ser acolhida. E ela fez ao contrário, nos orientou isso, alegando que a criança seria um pepino para nós, e que se quiséssemos eu poderia tomar uma injeção e retirar a bebê”, lembra, acrescentando que naquele mesmo dia trocou de médica.
“O restante da família me acolheu e tive tempo de me preparar. A Cecília nasceu dia 9 de agosto de 2022 às 22h55min no Hospital Moinhos de Vento em Porto Alegre, em uma cesária de emergência – uma data que ela escolheu para nascer”, lembra. Mas, porém, todo o seu amor, e a vontade de acolher esse ser de luz que chegou em sua vida, não foi suficiente para manter a família: o marido a abandonou, deixando com uma filha pequena especial para cuidar, sozinha.
“Quando chega um filho especial a descoberta acaba impactando toda a família e ao casal, mutas vezes terminando com aquilo que talvez não fosse tão sólido. Eu fui abandonada pelo meu marido, quando ela estava com 5 meses e meio. Eu estava em licença maternidade. E eu tive que sair da casa, buscar ajuda com uma filha pequena, sozinha em Porto Alegre, e sem saber muito sobre essa maternidade. Ele não teve maturidade para aceitar”, desabafa.
OS MEDOS
“A gente vive um puerpério muito intenso. Vêm as dúvidas: será que minha filha será aceita? Será que ela vai sobreviver? Como vencer as constantes doenças respiratórias? Ela chegou a fica na UTI aos 8 meses com problemas respiratórios, depois a gente descobriu uma laringite, e por fim uma asma. Aos poucos a gente foi descobrindo todos os desafios que viriam nesta maternidade e vencendo, um de cada vez”, diz Ariela.
VINDA PARA SANTO ÂNGELO
“Como eu era oficial temporária no Exército, decidi voltar para Santo Ângelo, apesar do medo de retornar para o interior e faltar alguma coisa para ela. Porém, fui surpreendida positivamente – encontrei profissionais fantásticos que me acolheram e acolheram minha filha em um trabalho lindo de neuroreabilitação. Assim como também encontrei preconceitos. Não foi fácil, foi a coisa mais difícil escolher uma escola para ela, me deparar com situações de preconceito, de pessoas bastante limitadas, mas também encontrei pessoas muito boas. Quando se fala em inclusão escolar as pessoas pensam que é uma rampa, que é acessibilidade, e não é: é incluir aquela criança com aquela necessidade no ambiente escolar, para que ela possa pertencer àquele local Mas graças a Deus numa sala de espera uma mãe me indicou uma escola para estudar aqui, e fomos muito acolhidas: a Cecília foi muito bem recebida no Verzeri, e somos muito felizes aqui. O Verzeri nos abraçou. Hoje ela é muito estimulada na escola, ela ainda não caminha e a escola aceitou ela, mesmo assim, aceitam ela do jeitinho que ela é. O pessoal do lanche da escola adaptou o lanche para ela. Em nenhum momento eu percebi rejeição dos outros pais em relação a ela, e estamos muito felizes”, diz.
Ariela é enfermeira e na atualidade trabalha no Hospital da Unimed Noroeste de Ijuí, como enfermeira auditora. Para ir e voltar conta com o apoio da avó, que leva Cecília para as terapias, e da irmã. “Minha mãe leva, minha irmã busca e somos uma família feliz”, conta.
REALIZAÇÃO
“A Cecília abriu meus olhos, me salvou como mulher, como pessoa. E me mostrou um mundo que sempre esteve apagado aos meus olhos. Antes eu nunca havia sido sensível a este assunto, nunca prestei atenção a causa inclusão. Hoje me coloco no lugar de cada uma das famílias que passam pelo mesmo processo de aprendizagem, estamos mais sensíveis às causas de inclusão, a dores, ao dia a dia, me tornei uma militante muito forte sobre inclusão. Eu criei uma página no Instagram para mostrar um pouco a rotina dela, e sensibilizar que dá sim para ter filhos com necessidades especiais, apesar de o nosso trabalho como mãe ser redobrado, porque tem que se preocupar com todo o trabalho para criar, cuidar e desenvolver, e em como a sociedade vai receber essa criança. A sociedade contribui para a vida daquela criança, em como ela vai se formar, e isso é uma coisa que eu estou vivendo intensamente”, destaca.
Ariela lembra que “hoje o maior desafio de se mãe atípica é o desconhecimento dos profissionais de saúde em atender, com o olhar diferenciado que é preciso ter para cuidar das crianças especiais e eu espero que isso melhore. Também pagar as terapias, as brigas constantes com os planos de saúde – quando se consegue um plano de saúde; o custo das terapias, entender que a criança precisa ser estimulada e as questões do entendimento da sociedade que ‘cabe todo mundo no mundo’.
Desde que soube que teria uma criança especial, Ariela buscou conhecimento. “Virei uma estudiosa no assunto, para poder dar uma vida melhor para ela”, lembra, acrescentando “o sucesso de uma criança para se desenvolver é a terapia, o suporte técnico”, avalia. Hoje com 2 anos e 9 meses, Cecília tem quadros de infecção respiratória, que altera todo o metabolismo, e necessita de atendimento especial. “Ela tem alergia, é asmática, teme seletividade alimentar, é todo um cuidado alimentar que precisa ser acompanhado diariamente”, diz Ariela. Esse cuidado, diferenciado, no entanto, não é desanimador. Pelo contrário: a faz viver uma história de amor que se renova a cada dia.
Edna Lautert/Jornal A Tribuna Regional